O diretor da Associação Brasileira dos Químicos e Técnicos da Indústria do Couro (Abqtic), Etevaldo Zilli, foi um dos milhares de brasileiros que, no começo dos anos 1990, foi à China como contratado da então embrionária indústria calçadista local. Ao contrário de muitos, ele não foi para ficar, apenas para prestar consultoria a algumas empresas. “Praticamente não se trabalhava com couro lá. Só se usava material sintético. Os sapatos custavam US$ 2, US$ 3”, lembra.
Nos últimos 20 anos, porém, a mão de obra qualificada que migrou do Brasil, dos Estados Unidos e da Itália para o polo calçadista de Dongguan – que abriga atualmente mais de três mil brasileiros – promoveu uma mudança estrutural importante no setor.
Os calçados mais baratos continuam sendo produzidos, mas agora eles dividem espaço com peças de maior valor agregado, feitos especialmente em couro. A segunda geração de brasileiros que trabalha na indústria de calçados chinesa presta serviços principalmente para marcas internacionais. A filha de Zilli, por exemplo, trabalha há cinco anos como especialista em couro na China, atualmente para uma marca americana que vende botas estilo cowboy que não saem por menos de US$ 200 ao consumidor final.
A sofisticação da indústria calçadista chinesa e o encolhimento do setor no Brasil, contudo, têm impactos na economia brasileira que vão além da migração de uma segunda geração de brasileiros. Ela reforçou mais um caso de “primarização” da pauta de exportações, com impactos diretos no segmento de couro.
Na contramão do desempenho das exportações da indústria calçadista, as vendas de couro para o exterior aumentaram de forma significativa nos últimos anos. No acumulado entre janeiro e outubro deste ano, o comércio de couro brasileiro com outros países movimentou US$ 2,1 bilhões, aproximadamente 23,5% mais do que no mesmo período de 2008. Em quantidade, o avanço foi ainda maior, de 25,8%. As exportações de calçados, por outro lado, diminuíram 41,2% em valor nesse intervalo (para US$ 1 bilhão entre janeiro e outubro) e 27,4% em quantum. Os dados foram obtidos na Secretaria de Comércio Exterior (Secex).
Em 2012, a China ultrapassou a Itália – cliente histórico do curtume brasileiro – e se tornou o maior comprador de couro do país. A nação asiática foi o destino de quase 25% do total exportado, em valor, pelo setor entre janeiro e outubro deste ano. José Fernando Bello, presidente do Centro das Indústrias de Curtume do Brasil (CICB), afirma que a expectativa para este ano é que 75% do couro produzido no país seja exportado, contra 70% no ano passado e 40% em 2003. Também contribui para esse quadro, ressalta, o uso cada vez mais intensivo de material sintético na produção de calçados esportivos e femininos no Brasil.
A inversão na pauta brasileira de exportação – mais couro e menos calçados, proporcionalmente -, explica o economista Fabio Silveira, da GO Associados, caracteriza mais um caso de primarização da pauta brasileira de exportações – quando commodities e produtos de menor valor agregado ganham cada vez mais relevância na balança comercial, em parte em detrimento do produto doméstico de maior valor agregado. “Esse é um tipo de desindustrialização flagrante”, pondera.
Ele chama atenção para a mudança na composição do superávit da balança do setor de couro e calçados. De US$ 1,950 bilhão de dólares em 1997, o saldo anual subiu para US$ 2,3 bilhões em 2012. Naquela época, o resultado do segmento de calçados era responsável por 70% do total, e o ramo de couro respondia pelo restante. Em 2012, o percentual de calçados recuou para 44,6%.
Entre janeiro e setembro deste ano, a quantidade de pares exportados pelo Brasil para os Estados Unidos, um mercado que passou a comprar bastante da indústria calçadista chinesa e é ainda o maior importador de produtos do setor no Brasil, foi 21,4% menor do que no mesmo período do ano anterior. Em valor, a retração foi um pouco menor, de 9%.
A situação se repete nas trocas com países como França (-25,7% em pares e -9,3% em valor), Reino Unido (-39,2% e -31,3%) e Alemanha (-23,9% e -24,3%) e são as maiores quedas registradas pelo levantamento da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados). Em 2012, as vendas aos Estados Unidos ainda cresceram em pares – 9,2% -, mas diminuíram 16,2% em valor.
Nova geração de imigrantes trabalha para marcas internacionais no país
O gaúcho de Sapiranga Everton Silva trabalha para a marca britânica Clarks há três anos, em Dongguan, no sul do país. Antes de se mudar para a China, em 2004, aos 25 anos, ele trabalhou por onze anos no grupo Paquetá, dono de marcas como Dumont e Ortopé. Com a ajuda dos cursos profissionalizantes dados pela própria empresa e pelo Senai da região, dominou o sistema CAD/CAM, usado para modelar calçados, e foi contratado na China como especialista. Passou pelo setor de controle de qualidade e hoje trabalha em desenvolvimento de produtos, junto com os escritórios nos Estados Unidos e Inglaterra.
A Clarks chegou a produzir no Brasil, em fábricas terceirizadas. Por conta da pressão do aumento de custos, afirma Silva, trocaram a gaúcha Sapiranga por Uruburetama, no Ceará, mas há dois anos saíram do país. Atualmente, as unidades parceiras na República Dominicana e em outros países do Caribe dão conta das exportações para a América Latina, diz o brasileiro.
Com o desenvolvimento do polo calçadista de Dongguan, os preços na província de Guangdong, onde o município está localizado, subiram e empurraram a fabricação de produtos mais baratos para Wenzhou, mais ao norte, e para países vizinhos como Vietnã e Camboja.
A embaixada do Brasil em Pequim informa que Dongguan ainda é a cidade com maior número de brasileiros na China. São cerca de 3 mil, ante 1 mil em Pequim, por exemplo. O setor comercial do consulado em Cantão, onde fica a província de Guandong, afirma que há atualmente 21 companhias calçadistas brasileiras na cidade, muitas em parceria com sócios locais chineses.
Em 2009, uma dessas empresas, a Paramount Asia, esteve entre as recordistas de exportações da China, com 35 milhões de pares vendidos. Há alguns anos o governo local vem privilegiando indústrias de mais alta tecnologia e, como consequência, promovendo êxodo daquelas que pagam salários menores. As marcas internacionais que permanecem na região enfrentam hoje custos de produção mais altos, mas contam com a boa infraestrutura de logística disponível, aspecto que faz diferença hoje no mercado calçadista.
Fonte: Valor