A entrevista de trabalho começou assim: a empregada doméstica quis saber o tamanho da casa, quantas pessoas moravam nela, a rotina de todos, os hábitos das crianças e a quantos metros ficava o ponto de ônibus mais próximo. Ao final, a candidata à vaga disse que ligaria de volta caso tivesse interesse.
— Percebi que quem tinha sido entrevistada era eu! — exclama a economista carioca Silvia Oliveira. — E, depois de uma semana, nada. Eu que liguei de volta perguntando se ela já havia se decidido. Me vi usando argumentos para convencê-la, mas não adiantou. Ela não quis o trabalho.
A situação ilustra um novo comportamento que permeia as relações entre domésticas e patroas no Rio, cada vez mais percebido ao longo dos últimos anos e constatado por uma recente pesquisa feita pelo Riologia, projeto desenvolvido pela agência de publicidade NBS em parceria com a Casa 7 Núcleo de Pesquisa. Das 300 empregadas ouvidas entre os meses de agosto e setembro deste ano, 76% se encaixam no novo perfil identificado: profissionais do lar que sentem mais orgulho do seu trabalho, se dão conta de que são indispensáveis, têm maior poder de escolha da casa onde vão trabalhar e hábitos cada vez mais parecidos com os das patroas, além de estabelecerem uma relação menos calcada na hierarquia e mais na parceria.
— Quisemos fazer o perfil das novas domésticas porque, com a PEC, esse é o assunto da vez — diz Bruno Altieri, diretor de Planejamento da NBS.
Empregada se exercita na Lagoa
Altieri refere-se à proposta de emenda à Constituição que assegura aos domésticos direitos iguais aos dos demais trabalhadores — a PEC das Domésticas, como ficou conhecida. Aprovada com unanimidade pelo Senado e promulgada pelo Congresso no início de abril, a lei apenas selou, de acordo com o publicitário, uma mudança que já vinha acontecendo.
— A PEC fechou um ciclo de mudanças atitudinais que já eram percebidas: a imagem das domésticas sobre seu próprio trabalho com a ajuda de novelas como “Cheias de charme”, o aumento do salário e, consequentemente, o maior poder de compra… A lei veio para legitimar tudo isso. Ela agora se comporta como qualquer funcionário de qualquer empresa.
Há sete meses, Sulamita Marcolino da Silva, de 37 anos, começou a correr na Lagoa. Como todo maratonista iniciante, leva mais de uma hora para completar uma volta. É o que ela calcula, visto que o trajeto que percorre, da Rua Maria Quitéria até o Parque dos Patins, lhe toma cerca de 40 minutos. Fôlego não falta para concluir o percurso. Mas ainda não dá tempo. Empregada doméstica em Ipanema, ela usa sua hora de almoço obrigatória — prevista na PEC — para se exercitar.
— Com a lei, tenho mais tempo para mim — opina a cearense Sulamita, moradora da Mangueira. — Agora consigo sair do trabalho na hora e ir para a academia todo dia.
Há cinco anos, quem tem a agenda com os horários da servidora do estado Daniela Magalhães e de seus dois filhos é Francisca Melo. Presença imprescindível no apartamento da Tijuca onde trabalha, ela, chamada de Lili, é tida como uma administradora da casa. Usa até cartão de crédito da conta de Daniela, para despesas como as compras do mês.
— Ela não é minha empregada. Não gosto de chamar assim. Digo sempre que é minha secretária — sublinha Daniela.
De acordo com Adriana Hack, sócia-diretora do instituto de pesquisa Casa 7, foram feitas dez perguntas às entrevistadas. Eram questões como: “Faço coisas iguais às que meus patrões fazem” e “Sei dos meus direitos e ninguém me faz de boba”. As que se identificaram com pelo menos sete das perguntas, entraram para o novo perfil identificado, ou seja, 76% das 300 domésticas.
— Nunca senti vergonha de dizer que era doméstica, mas agora tenho até orgulho — diz Lili.
As mudanças acarretadas pela PEC são visíveis também na cozinha de um apartamento no Jardim Botânico, onde a paraense Roseli Gaspar da Silva trabalha. Na geladeira, uma folha de ponto afixada por um ímã controla o horário de entrada, saída e almoço da doméstica.
Apesar de dormir no trabalho de segunda a sexta, ela usa o tempo livre que agora lhe é de direito e faz um curso de computação à noite. Nos fins de semana, dá aula de catecismo na igreja que frequenta. Dos primeiros patrões, Roseli não guarda boas lembranças.
— Eles só me pagavam o dinheiro da comida e das roupas para eu vestir. Não tinha nem, assim, um salário. E eu morava lá, não tinha como sair — conta. — Hoje minha vida é totalmente diferente.
Fonte: Agência O Globo